Já não sei quando criei este perfil no Substack. Sei que aqui ficou, vazio e inativo, durante imenso tempo. Sempre quis um espaço onde pudesse debitar as minhas “im-pelicâncias” mas por algum desalinhamento cósmico nunca encontrei o tempo ou espaço para o fazer.
É hoje. E porque tantas vezes precisamos dum gatilho, o meu foi a última Maybe Not, da Marta Gouveia - go say hello to Marta, e consumam-na, para crescerem fortes e saudáveis ao nível do pensamento abstracto, questionamento existencial e muitas outras miudezas sonoras, gastronómicas, visuais, literárias, vitais! A Marta vive com um grilo falante no ombro e a Maybe Not, invariavelmente, traz questões que nos espicaçam o espírito. Assuntos sobre os quais já reflectimos, outros que nunca nos ocorreram, dúvidas com que nos identificamos, empatizamos, sensações que perseguimos ou queremos esquecer. Um menu de food for thought que, no final, ainda oferece uma lista de recomendações, que nem aquele chocolatinho que vem com o café.
Na última Maybe Not, a Marta fala sobre a essência da nossa realidade, sobre a construção fragmentada e surrealista do Eu e da nossa existência individual e disseca o Cadavre Exquis, um conceito nascido pelas mãos e mentes de artistas do movimento Surrealista:
“Paris, 1925. Um grupo de surrealistas inventa um jogo: escrever uma frase, dobrar o papel, passar ao próximo que continua sem saber o que está escrito. Chamaram-lhe cadavre exquis, nome que surgiu da primeira jogada: le cadavre exquis boira le vin nouveau (o cadáver esquisito beberá o novo vinho.) Mais tarde, repetiram o jogo com desenhos: uma cabeça, depois um torso, depois as pernas. Ao desdobrar o papel, o corpo era grotesco, absurdo, cómico, mas vivo.”
E por aí vai a Marta, esmiuçando referências, tecendo reflexões e ensinando-nos a reflectir. Parece que somos uma espécie de cadavre exquis surrealista, um desenho-colectânea, esboçado pelas mãos de tudo e todos com quem cruzamos caminho. Uma quase-experiência da experiência, sobre a qual pouca ou nenhuma agência temos ou teremos. E essa constatação vem com uma comichão, traz um sentimento de fragilidade, de incerteza, quase de desconfiança, em relação ao que é real e ao que é construído - quem somos afinal se tudo em nós for rabisco alheio, involuntário, inescapável?
“Ao desdobrar o papel, as proporções nunca batem certo. As peças não encaixam. As linhas contradizem-se. Mas há uma figura. Estranha, absurda, terna, disforme. E viva. Algo que se assemelha a uma pessoa. Algo que se assemelha a mim.”
Apesar do questionamento, o tempo traz a revelação e acabamos por nos reconhecer nessa obra improvável. Acabamos por reconhecer que nunca somos realmente e totalmente uma obra nossa. Apenas oferecemos a tela. Apenas acolhemos as pinceladas. Apenas ajustamos perspectivas. E que bonito é entender que essa colagem de linhas soltas que resulta quase sempre num desenho incoerente e imperfeito é, afinal, um retrato extraordinariamente real daquilo que somos e vivemos.
“Nunca quis que a minha vida fosse perfeita. Mas sempre quis que fosse verdadeira, mesmo que esquisita, porque é o único lugar onde me reconheço. No fim, a verdade exige apenas uma coisa: ter a coragem de desdobrar o papel e encarar o corpo costurado da própria vida, sem medo de confirmar o que sempre soube. Sim. Isto é meu.”
Fiquei a pensar sobre o momento em que percebi esse processo. Na verdade, creio que nunca é um momento exacto. É uma conclusão que se vai assomando nas curvas do caminho, quando encontramos facetas nossas que não nos lembramos de ter desenhado. Uma estranheza familiar, como aqueles rostos que conhecemos de algum lado mas não sabemos de onde. Atormenta-nos, até ao dia em que percebemos quem ou o quê os traçou e voltamos a fazer sentido.
Torna-se a mais libertadora revelação entender e aceitar que não temos total agência sobre o Eu fragmentado que emerge da vida vivida, do produto da nossa realidade. E levamos tempo a alcançar essa revelação. Umas vezes por desatenção, outras vezes por teimosia, tantas vezes por orgulho. Somos ensinados e incentivados a crescer dentro de moldes pré-formatados. É seguro, é previsível, é normal. É o que se espera. E foi talvez por estar suspensa neste raciocínio sobre os preconceitos que nos incutem que, ao percorrer a Maybe Not, cheguei à imagem da obra Long Distance e, num primeiro relance pela imagem, vi o Sudário de Turim.
What?! Porquê? Não sei bem, algo na imagem me lembrou a velha mortalha encardida (sacrilégio!). Fiquei a pensar nesse curioso engano e na ironia da antítese entre a Long Distance e o Santo Sudário. Ambas são expressões humanas, mas parece-me que só a primeira se aproxima duma representação da verdade, enquanto a segunda me parece representar a fantasiosa bitola ocidental do ser humano ideal. Será preconceito meu? Hmmm…
Essa relíquia mais-que-santa é apenas uma das muitas formas de manifestação de uma narrativa que nos incute, na essência, a utopia de um Eu imaculado. E como esta relíquia tantas outras “relíquias” são apenas símbolos de um fórmula inventada, de um conceito intangível e inatingível de um Eu construído em perfeito equilíbrio, com princípio, meio e fim. Com propósito e com porquê.
Não será a busca por essa construção verdadeiramente surrealista?
Não será o conceito de cadavre exquis muito mais verdadeiro enquanto processo de desabrochar da identidade individual? Não seria esquisito (e tão desinteressante) se a construção desse corpo de retalhos que somos se revelasse uma obra sem costuras e sem enxertos? Sem incongruências e sem aquele grotesco que nos faz questionar a sanidade das nossas decisões, das nossas escolhas?
É que entre os borrões negros e as linhas descontínuas que se desenham tantas e tantas vezes no surrealismo dos dias, não vejo fragilidades nem incongruências. Vejo (sobre)vivência. Enquanto caminhamos num mundo cada vez mais desconjuntado nos valores, perdido nas direções e sedento de sentido, celebremos a flexibilidade, a resiliência e o esmagador realismo desse Eu Exquis que somos.
Por isso, Marta, obrigada pelo insight, pelo impulso e pela conclusão de que, fragmentados, venceremos! Or so we hope :)
Que bela forma de começar por aqui! Vou levar o resto do ano a pensar no grilo falante que tenho no ombro, mas acima de tudo na sorte que tenho em ter amigas como tu 🤭❤️