a cor preferida
cliché ou inevitabilidade?
Ultimamente, tenho passado por uma série de textos e outras manifestações de opinião sobre cor. Cor na pintura, cor no cinema, cor na moda. A cor é isto, é aquilo, significa assim e significa assado. Cor. É daquelas palavras que, se a repetirmos muitas vezes de seguida, parece que perde o sentido.
Cor, cor, cor, cor, cor…
Não concordo necessariamente com os significados que a psicologia da cor designa (é incrível a necessidade que temos de colocar tudo em “caixinhas”!) Vermelho é paixão, é ira, é intensidade. Ou, no marketing, é fome, é impulso de compra, é apelo à ação. Azul é calma, é concórdia, é equilíbrio. Ou, no branding, é institucional, é seriedade, é confiança.

Não quero ter a arrogância de descredibilizar esse modelo que alguém desenhou ao longo de muitos anos, com base em métodos científicos, e que, aparentemente, ajuda tanta gente a entender o mundo e a saber o que deve pensar ou sentir na presença desta ou daquela cor. Mas creio que, numa perspectiva pessoal, as nuances são muitas. A cor faz parte do mundo e a forma como percepcionamos o mundo depende fundamentalmente do meio em que crescemos, em que nos tornamos seres pensantes, e das histórias que lemos ao longo desse tempo.
Lembro-me que, em miúda, passei belas férias na casa da minha querida avó Maria, no Alentejo, onde nunca faltavam as popias e o doce de tomate. A oficina do meu avô João (este sim, o Pelica original), carpinteiro, ficava no quintal cujas paredes rugosas e brancas da cal brilhavam com o Sol escaldante e jogavam para dentro da oficina uma luz poeirenta muito particular, que ganhava um tom castanho baço. Hoje o branco, o castanho e quase todas as suas tonalidades são cores que me aquecem o espírito, que me remetem para essa atmosfera de “tudo está como é suposto estar”.
Compreender esta construção intelectual, social e cultural que inclui conceitos, signos, símbolos, interpretações e memórias completamente pessoais é tão simples e tão complexo como compreender que deste “lado”, faz-se o luto de preto e, no outro “lado”, faz-se o luto de branco. Parece-me um exercício que tem tanto de intelectual como de emocional. Toda a cor tem uma identidade e cada cor tem tantas identidades quantas os olhos que a percepcionam e vivem. E eu acho isso o máximo.

Mas não sentem que a cor é uma entidade um bocado alienígena? Meio rebelde, meio espírito livre, meio “sou o que eu quiser para quem eu quiser”? Parece que está provado que nem todos vemos as mesmas variações duma mesma cor e temos a certeza de que uma mesma cor não significa o mesmo para toda a gente. Isso leva-me ao fenómeno da cor preferida. Ter uma cor preferida soa ainda mais a cliché quando algumas pessoas são mesmo ortodoxas nesta escolha, mas eu acho que nem só de uma cor vive o Homem! Aliás, a definição de “preferido” não é exclusiva, apenas implica que se dê primazia a isto em relação àquilo. E creio que, assim sendo, também tenho realmente uma cor preferida.
Mas porque será que pendemos para uma cor? Em que momento da tal construção desse edifício que somos, essa entidade fluida que é a nossa cor preferida entra no processo? Será que as pessoas que têm como cor preferida o lilás cabem todas numa mesma “caixinha” que é, definitivamente, diferente da “caixinha” onde estão as pessoas que preferem o amarelo? (a este propósito, mais informo que para mim o lilás não é cor que se apresente!) O que é que ter como cor preferida o cinzento diz sobre uma pessoa? E será que diz alguma coisa? Será que essa pessoa vê o mundo de maneira diferente da pessoa que tem o laranja como cor preferida? Haverá cores mal amadas? Cores sobrevalorizadas? Cores injustiçadas? Cores esquecidas? Cores cansadas de tanto serem usadas?!
Cor, cor, cor, cor, cor…
Eu pendo para o verde. Para os verdes. Escuros, claros, intensos, abertos, profundos, desbotados. Não interessa. Se tenho muitas coisas verdes, tipo objectos, roupas, etc, em verde? Nem por isso. E, no entanto, é a minha cor preferida. Nunca me tinha detido a pensar no assunto, mas, como disse no início, surgiram-me recentemente várias peças de conteúdo sobre cor e acabei por fazê-lo. Não hesitei em saber que o verde é a minha cor preferida, mas acho que, se calhar, tenho o verde mais como um lugar abstracto ou como uma sensação. É estranho, nem sei se o consigo descrever com sentido. O verde é uma cor. A minha cor preferida. E apesar de constatar que não a uso assim tanto, pelo menos não no sentido físico em que se pode usar uma cor, associo a cor verde a mim. Antes de pensar no assunto, diria que a uso constantemente, mas é curioso. Talvez não lhe dê uso, mas sei que a “uso”. O que associo eu à cor verde?
“Look for the valleys, the green places, and fly through them. There will always be a way through.” - C.S.Lewis
Há sempre aquela sabedoria popular que empresta carácter às cores numa espécie de psicologia da cor na prática e para não-académicos (quiçá mais acertada!) Inveja, ganância, dinheiro, sorte, esperança são os significados mais comuns. Mas lá está, em cada olhar, um significado. É a cor preferida do meu pai e ele diz que é por ser a cor do Sporting, o clube que conquistou o seu coração por influência de um tio. Somos parecidos em muitas coisas e diametralmente opostos noutras tantas e, clubisticamente, decididamente não estamos de acordo 🦅 !
Não tenho consciência se algo ou alguém me influenciou em relação ao verde. Penso que não, e isso ainda é mais interessante. O meu clube é vermelho, os meus olhos são castanhos, o mar da minha praia é azul. Mas eu sou verde.
E para mim verde é veludo, é flanela, é água fresca, é aquela brisa boa que não é quente nem fria, aqueles serões com família e amigos, jogos de mesa e amendoins torrados, a hilariante falta de jeito para ditados populares da minha amiga Sandra, fins de tarde a jogar futebol num campinho de rua, o cheiro de livros antigos descobertos numa caixa esquecida na arrecadação, a satisfação de saber que ajudei alguém, a textura de gelado macio de caramelo salgado, saber o tempo bem gasto, a sorte duma laranja doce, notas esquecidas em casacos de Inverno, a alegria da minha Avó Maria a cantar e a passar a ferro, aquela sensação serena de que tem que existir algo mais para além do que percepcionamos porque nada faz completo sentido e, no entanto, tudo é uno. E tantas outras coisas.

Ainda podia dissertar imenso sobre as associações socialmente convencionadas em torno das cores, tentativas de mapear o mar de seres humanos de que todos fazemos parte e que todos navegamos. Mas aborrece-me mergulhar nos comunistas vermelhos, nos pacifistas brancos, nas meninas cor de rosa e nos meninos azuis e noutras tantas “caixinhas” que foram designadas e para tentar confinar as cores. Ridículo. As cores são senhoras dos seus narizes e vão sempre escapar aos estereótipos para surgir diante de novos olhos com novos significados, independentemente das convenções e das expectativas.
Quanto a mim, não sei se sou eu que prefiro o verde ou se, em algum momento, o verde me preferiu a mim e se entranhou na minha identidade e nas minhas memórias com o seu significado. Mas agora que pensei mais a fundo sobre isso, gosto ainda mais dele. Do verde.

